o símbolo discursivo é a coisa mais bonita que se pode alcançar.

priscila cleto
3 min readApr 20, 2021

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olhar pro céu azul.

olhar.

era manhã de quinta-feira, horas em frente a um hospital, calada. como se olhasse o tempo e o espaço dando continuidade irregular. de novo, uma interrupção.

engraçado enxergar dessa maneira: o momento abrupto da notícia que muda o curso de um dia comum. desses encontradiços, que se acorda e segue aquele ritual mecânico e dogmático de banho, roupa, caminho, café. ninguém enxerga o mundo que está acontecendo enquanto um café é virado enlevado goela abaixo na desprezível tentativa de se manter acordado, fingindo uma continuidade não irregular. é assim com todos os cafés, é assim com a vida: goela abaixo.

quando eu era adolescente, ouvi num episódio inspirado no poema Ismália, de uma série brasileira, a sobrinha que perde o tio dizer que nunca iria entender a decisão dele de “ir embora da vida”. eu também jamais entenderia. me parece que é preciso muito medo para não enfrentar a vida, mas ao mesmo tempo é preciso muita coragem para enfrentar a morte. a linha tênue do paradoxo da sobrevivência de uma alma confusa. confusa e com medo.

confusa.

talvez seja isso que me faça confundir essa coragem. enfrentar a morte é conseguir manter-se vivo. não faz sentido ter coragem para a morte e medo da vida.

confusa. e com medo.

como muitas das almas.

naquela quinta-feira, não havia o que fazer. e não havendo o que fazer, se interrompe o tempo e muda-se o espaço. entra-se na condição da espera. você só ouve os seus pensamentos… os carros na avenida em frente ao hospital? são figuração da vida acontecendo. as pessoas? figurantes da vida acontecendo. os emails chegando? consequências da figuração.

da vida,

acontecendo.

cansou-se do estado inquieto da espera. entrou no carro para esperar o tempo em outro espaço. foi nesse momento que deu-se a beleza do símbolo discursivo. o céu escureceu.

vento.

céu escuro.

muito vento.

era uma chuva anunciando-se. dessas que derrubam árvores, que encharcam, que inundam, que dão medo. dessas que a gente chama de tempestade.

conforme o vento aumentava sua força e velocidade, o peito estufava, enchia-se, sufocava. o ar todo em volta circulando numa velocidade acelerada. o ar todo de dentro: preso.

até as gotas começarem a cair. uma a uma e depois cachoeiras. água, com força, caindo em pingos compridos. todos de uma vez, assim, de repente. até irem diminuindo.

depois de uma chuva forte, o cenário: rodos tentando conter as águas que caíram, panos e panos para enxugar, galhos espalhados bloqueando a visão e a passagem, lama. as pessoas tentando organizar o caos. nesse deslocamento do tempo da espera, via-se na reta avenida: o caos, no seu começo; a tentativa de organização e limpeza, no seu meio; a luz pós tempestade, no seu final. ainda muita bagunça, mas iluminada. como quem avisa que há o que se possa fazer.

sempre há,

o que se possa fazer.

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priscila cleto

onde tudo pode acontecer, inclusive nada. escrevo porque viver dói