“o mistério fez a vida porque queria exemplificar-se”

priscila cleto
5 min readApr 22, 2021

--

há exato um ano, completávamos um mês trancados em casa por conta da pandemia do Covid-19. o medo continua o mesmo, talvez de forma aumentada. o desconhecido. medo da morte, medo da fome, medo da perda.

hoje, estamos numa situação muito pior, vivendo um desgoverno que nos faz sentir na pele a ironia daquele meme: o governo é péssimo, mas temos que reconhecer que hoje estamos melhor do que estaremos na semana que vem. o famoso “pior do que está, fica”.

esses dias, fomos na casa de um tio avô que faleceu no início do ano, vítima do Covid-19.

ele já era um pouco velho, morava sozinho, numa casa antiga no centro da cidade. a esposa dele, uma mulher espanhola, já havia falecido há alguns anos e a filha mora nos estados unidos. configuração familiar turbulenta, bom pra me lembrar que não é só a minha…

a casa estava em desmonte. os móveis sendo arrastados, as louças sendo tiradas dos armários, os documentos em cima da mesa da cozinha, itens decorativos na mesa de centro do meio da sala, o sofá cheio de objetos.

a casa era comprida, com um chão de taco lindo e bem preservado. “eu moraria aqui” pensei ao entrar, porque eu ando nessa vibe de casa velha e antiga, com janelas grandes de madeira, azulejos com desenhos floridos e cores duvidosas, tipo amarelo gema ou azul bebê.

por fora a casa aparentava ser pequena, pois era estreita, com os cômodos de forma sequencial: o portão pra entrar na garagem e uma porta para a área interna seguida de um longo corredor cheio de portas. a primeira era um escritório com estantes grandes até o teto. depois seguia-se para a sala, quartos, até chegar na cozinha. embora fosse um corredor sem degraus ou rampas, havia nele por inteiro um corrimão. bem no estilo casa adaptada para uma pessoa já de idade.

ao longo daquele corredor imenso, muitas e muitas caixas. foram retirados das estantes todos os livros que haviam naquele lar e encaixotaram. em uma separação rápida, tentando dividi-los por gêneros, o que pareceu besta porque a maioria era sobre história e política. se eu precisasse chutar, diria cerca de vinte caixas de papelão cheias de livros, enfileiradas pelo corredor comprido. nós reviramos cada uma delas. aliás, era pra isso que estávamos lá… entramos na casa para revirá-la. o habitante havia partido, para nunca mais voltar. e nós, como invasores, revirando suas coisas, seus móveis, suas louças, seus livros, sua privacidade.

print da minha biblioteca de fotos do celular: parte das caixas cheias de livros ♥

você parte e outros sujeitos adentram o que você construiu como particular.

uma parte de mim se culpava, não tínhamos a permissão dele pra estar ali. a outra se sentia honrada por desvendar um sujeito com o qual tive pouco contato.

me contaram que ele era uma pessoa introspectiva, que gostava e prezava pela solidão. depressivo, classificaram.

quando sua esposa faleceu, preferiu fingir que ela nunca havia existido. sempre que alguém, que não sabia da notícia da morte, ligava para a casa perguntando por ela, respondia que não morava ninguém lá com aquele nome, que não conhecia. enfrentar o luto é algo difícil demais.

ao mexer em seus objetos, anotações, livros, agendas e álbuns fiquei pensando muito sobre o que podemos significar pro mundo (pra parte do mundo). fiquei o tempo todo quieta, abrindo caixa por caixa, descendo pelas prateleiras, abrindo livro por livro. alguns ainda estavam embalados com selo de preço das livrarias. os que não deu tempo dele ler. ficava imaginando o proprietário daqueles livros os escolhendo, lendo sua contracapa, colocando no balcão do caixa e depois na estante do escritório pra “ler mais tarde”. mas o mais tarde não chegou e agora estávamos ali, pessoas de grau de parentesco distante desorganizando tudo o que ele levou uma vida para organizar.

_ ele era um sujeito inteligente. concluo com base nos livros que ele possuía. e fiquei imaginando o que fariam com os meus se eu morresse amanhã. colocariam em caixas para a família escolher levar ou não? venderiam num sebo? doariam a uma biblioteca de bairro ou escola pública? o que diriam sobre mim com base nos meus livros?

refletiriam sobre isso?

um pedacinho da minha estante com meus livros: tem amor e poesia ♥

foi neste momento que, por mais que eu me ache muito cética, fechei os olhos e prometi cuidar daqueles que estava levando. “tio avô, caso esteja vendo e esteja furioso pelo desmonte da sua casa, eu prometo cuidar dos livros que um dia foram seus e agora estarão sob meu domínio”. serviu pra me confortar e levar vários. se eu conseguisse, levaria todos.

um dos que trouxe comigo foi Noites de Alface, escrito por Vanessa Barbara. confesso que achei a capa bonita.

essas senhorinhas, de binóculo com flores em volta ♥

lendo a contracapa, a sinopse, só consegui enxergar o tio avô se identificando com o personagem do livro e estabeleci uma certeza absoluta, com toda licença do pleonasmo, de que ele se enxergava em Otto:

“Após mais de cinquenta anos de casamento, Otto, um velho ranzinza e fechado, perde a esposa, Ada, da noite para o dia. Arrasado, ele se recusa a interagir com os habitantes da minúscula cidade onde mora, mas se vê acuado pelos barulhos e intromissões dos vizinhos: um farmacêutico viciado em efeitos colaterais de medicamentos, uma velha esotérica, uma datilógrafa hiperativa, um ex-comandante de guerra, um carteiro insistente e uma jovem antropóloga obcecada por esquimós.”

depois eu soube que o tio avô se recusava a ir na padaria Real, perto da sua casa, pra não correr o risco de encontrar gente conhecida. a vida imita a arte.

voltei de lá feliz, trazendo uma série de novos universos em forma de livros. gostei das caixas classificadas “ficção”, trouxe quase inteira. porque ficção é a arte imitando a vida e eu acho isso lindo. a possibilidade de viver mundos desconhecidos, para assim se (re)conhecer.

seria um processo difícil demais tentar descrever ou entender o que aquele momento, naquela casa, significou para mim. foi um dia que envolvia perda e morte, a maior angústia dos tempos pandêmicos, mas que me proporcionou um momento bonito. de (re)conhecimento.

vou finalizar com o que Maya Constantino chamou de oração silenciosa em uma das edições da sua newsletter “a voz da lua”:

Um quarto de quando eu era adolescente, uma escrivaninha rosa e uma janela aberta. Que o silêncio, a densidade do ar e o olhar atento dos céus sobre mim possam me transmitir a paz de espírito necessária para seguir…

coragem para seguir em frente. ♥

--

--

priscila cleto

onde tudo pode acontecer, inclusive nada. escrevo porque viver dói